Ode ao Café A Brasileira
Sento-me aqui,
nestas cadeiras de ferro, as exteriores, que são quase demasiado desconfortáveis para o propósito, ou então nas interiores, de madeira envelhecida dos anos, estas cadeiras rijas como o tempo que as desgastou lá atrás, e pergunto-me, por que será que me sinto pertencer aqui, aqui no café, “neste” café? E depois, é na própria confusão deste espaço, neste frenesim de movimento e ruído, que a resposta aparece nítida à frente, como que a pairar no ar. Percebo o café, que em toda a sua plenitude, representa a vida na sua essência. Percebo a vida, e que a vida é isto, esta inconstância de sons, portas que se abrem e fecham, vozes que falam ao mesmo tempo, pessoas que não têm voz, troca de ideias, convívio, momentos mortos, muitas máscaras, consolação, solidão, surpresa. A vida é isto e o café, resume-a.
No café está-se só sem se estar. Está-se acompanhado, mesmo que se esteja sozinho. No café nunca nos sentimos mal, mesmo que estejamos mal ou a relatar os nossos males. No café podemos gozar da nossa solidão sem que ela seja isso mesmo, sem o peso do abandono, da insignificância. Somos todos importantes no café, mesmo aqueles que não o são. Sem gente o café morre, e sem bebermos café cingimo-nos à vidinha normal, adormecidos na apatia das rotinas.
É que, no café, a normalidade não é banal, é especial. No café vê-se, cheira-se e mastiga-se vida. Em copos, chávenas, pratos, bules, pires, garrafas, colheres, garfos e facas. No café nada se destrói, tudo se transforma. Principalmente as pessoas, que se agitam, acalmam, alimentam o estômago, os intestinos, a bexiga, mas e principalmente a alma. A alma tem muita fome e o café resolve a fome do estômago, da alma, da vida. A pessoas transformam-se no café, e transformam o café.
O café é um lugar transitório. De repente, temos necessidade, ou simplesmente a vontade, de ir a algum lado e no café somos sempre bem-vindos, a qualquer altura do dia, estando só ou acompanhados. E somos todos meros transeuntes, ainda que sejamos os habitantes daquele lugar. O café abraça a nossa solidão, somos uma família de estranhos, tudo passa a ser permitido, cruzar olhar, observar, perguntar, falar, meter conversa, bisbilhotar, assobiar, até cantar.
No café percebemos o que é estar vivo, o que é viver. Que a vida se resume simplesmente caótica. Que ela é um simples caos. E a simplicidade, embora não pareça, é complicada, não se atinge facilmente, não é para qualquer um. Já complicar, todos conseguem. E, sem o café, não sobreviveríamos. O café remete-nos para essa simplicidade inatingível, onde compreendemos que não há nada mais simples do que a própria vida.
Estamos todos juntos no café, mesmo que cada tenha o seu espaço, a sua redoma individual, o seu lugar predilecto. Todas as gerações estão presentes, emanando recordações, sonhos, devaneios, fantasias, dúvidas, medos, esperanças e amor também. Há muito romance e sexualidade no café, e também há a decadência, a realidade inevitável dos factos e da vida: a sua morte. A mão sensual que despeja o café na boca, a mão que treme e o entorna na mesa.
Mas há cafés e cafés. Cafés que inspiram e cafés que chateiam, até irritam, outros que deprimem. Essas, são já outras estórias de café. E, quando “me fizer um dia sinal a morte” (letra de Vinicius de Moraes), alegrar-me-á saber, lá no além, que a vida (na Brasileira), continua.
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